Hoje é, ao menos
para mim, um feriado estranho, triste. Não é daqueles que a gente fica feliz
por ficar em casa por não ter que trabalhar ou estudar. Por ser Dia de Finados,
é inevitável não se lembrar de amigos, parentes ou, até mesmo, de artistas que admiramos
que já se foram. A gente sempre lida com
essas lembranças no decorrer do ano, mas nesse 02 de novembro, estas mesmas
lembranças chegam até nós com mais intensidade e força. E tristeza. E comigo não
é diferente. Bate uma saudade repleta de lembranças dos momentos que tivemos e
dos que poderíamos ter.
Já perdi gente que
foi vítima da violência, do suicídio (uma por afogamento, outro por
enforcamento), do câncer... A primeira vez que senti este baque, este
sentimento ruim que é perder alguém pra morte foi muito cedo, já na infância.
Eu só tinha 12 anos de vida. A primeira perda de outras que viriam.
Certamente, ela
está num lugar melhor que esse. Nunca a esqueci. Lembro da nossa última
conversa no portão da minha casa. Ela passou a mão no meu queixo antes de ir
embora, ao mesmo tempo em que dizia que na volta de um aniversário
continuaríamos a conversa. Mas ela nunca mais voltou...
Lembro com carinho
e saudade das nossas idas e vindas ao colégio com o meu casal de irmãos mais
novos que eu. A gente tava sempre junto e ela vivia lá em casa, na calçada da
minha casa brincando com a gente. Lembro-me também da risada inconfundível dela
e do modo de rir de tudo que achava engraçado. Como ela ria de quase tudo e
tudo pra ela era engraçado, ela estava sempre gargalhando, às vezes alto, sem a
menor cerimônia. Não podia ver alguém comendo algo que pedia um pedaço, o que
fez um menino comparar ela com a Magali, da Turma da Mônica. Uma noite
estávamos sentados na escada que tinha na calçada da minha casa. Eu e ela mais
embaixo e o meu casal de irmãos, mais em cima. Do nada, enquanto conversávamos, percebi uma irritação incontrolável no meu corpo, na parte da cintura pra baixo.
Eu sentei onde tinha umas formigas e elas entraram pela minha roupa e começaram
a me picar. Várias ao mesmo tempo. Eu, desesperado, comecei a fazer aquilo que
qualquer um faria: Levantar e tirar de forma brusca do jeito que dava. Não deu
outra: Manuela começou a rir alto da cena engraçada. Rir, não. Gargalhar alto.
Eu, claro, fiquei morrendo de vergonha por protagonizar essa cena na frente de
uma menina. Mas, depois de uns anos pensava nessa cena e começava a rir por
dentro, com a gargalhada dela no meu pensamento.
Quase dois anos
depois de sua morte, escrevi meu primeiro poema que falava dessa perda que nós
da Rua Dois tivemos. Como nessa época eu só fazia músicas, não gostei muito e
nem sei se aquilo era mesmo um poema. Escrever poemas pra mim era algo
inalcançável, praticamente impossível. Só tinha uma cópia e acho difícil
encontrar ele em algum lugar, mas lembro vagamente de alguns versos e o título
era O Pesadelo Que O Destino Nos Deu. Realmente. A morte é um pesadelo que a
gente tem acordado quando perdemos alguém que amamos.
Depois que
terminei o Ensino Médio e comecei realmente a escrever poemas com cara de
poemas, “Manuela” foi um dos primeiros que escrevi. Eu voltei no tempo e
escrevi aqueles versos como se eu tivesse 12 anos e tivesse acabado de
perdê-la. Ele tem um ar de ingenuidade que me encanta. Mostrei pra uma das
minhas irmãs e lembro-me dela boquiaberta lendo no meu caderno várias vezes.
Ela acabava de ler e lia de novo. Achei que ela não ia devolver meu caderno
nunca. Ali eu percebi que ela gostou do poema e se sentiu tocada. Que eu me
lembre ela só devolveu e não me disse nada. Mas, se disse, foi algo do tipo:
“Gostei.” ou “Tá bonito.” Mas aquela cara de encantamento ainda permaneceu
nela, mesmo depois da devolução do meu caderno. Depois que escrevi o poema que
tem o nome dela como título e que antes tinha o nome “Não Sei.”, último verso
do poema, escrevi mais um, um tempo depois intitulado “Brincadeira
Interrompida”, onde em algum momento da narrativa fala dessa característica dela
de estar sempre gargalhando e das nossas brincadeiras, como a de jogar bola na
calçada da minha casa e da vizinha que mora ao lado esquerdo de mim. Éramos só
nós dois e uma bola.Como futebol não era bem o seu forte, a brincadeira
consistia em apenas ela tentar tirar a bola dos meus pés.
Eu ficava driblando ela da ponta de uma calçada pra outra.
Manuela nasceu no
dia 10 de outubro, mesmo dia que meu irmão mais novo nasceu e era apenas um ano
mais nova que eu. Dois dias depois era o Dia das Crianças. Foi estranho ela não
tá junto com a gente naquela dia, que era o nosso dia. Foi num fim de semana
que ela morreu afogada. No primeiro dia de aula depois dessa tragédia, eu tava
sem o menor clima de ir pro colégio, mas fui. Dali em diante não teria mais sua
companhia. Eu pedi pra direção cancelar as aulas. Eles concordaram e uma
galera, muitos que nem a conheciam, foram até a casa dela. Era um velório sem a
presença dela, já que o seu corpo ainda não tinha sido encontrado. Alguns
estavam fazendo pouco caso da dor de quem a conhecia e não estavam nem aí.
Estavam mais preocupados em colher fruta do pé da casa dela. Ver aquela cena me
deu raiva. Quanta insensibilidade. Durante uma semana, eu acho, tinha reza na
casa dela com todos nós, seus amigos. Era difícil, mas eu queria pôr na minha
cabeça a esperança de saber que ela estava viva em algum lugar. Numa dessas
noites que tinha reza, chegou uma parente dela de longe, de outra cidade e ao
ver a mãe de Manuela, elas se abraçaram e começaram a chorar juntas. Ao ver
aquela cena triste na minha frente, meu coração se partiu e eu não consegui não
chorar.
Depois de um tempo, após eu escrever o poema que leva seu
nome como título, eu tive um sonho com ela. O único. Eu aceitei esse sonho
como uma resposta dela pro meu poema, que em alguns versos se perguntava se ela
estaria bem ou se ela leu o meu poema.
No sonho ela não dizia nada. Só sorria pra mim. Como na única foto que
tenho dela. Era um lugar alegre, cheio de crianças correndo, brincando. Foi um
sonho rápido. Acordei feliz por vê-la feliz, mas ao mesmo tempo achei aquilo
tudo meio surreal. Ela bem que podia voltar em outros sonhos.
Brasilino Júnnior, 02 de novembro de 2018
“Guardo um retrato teu
E a saudade mais bonita.”
(Legião Urbana)